terça-feira, 6 de novembro de 2007

Autopsicografia, Fernando Pessoa e a arte de escrever (além de conversas no msn)

Autopsicografia

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente

E os que lêem o que escreve
Na dor lida sentem bem
Não as duas que ele teve
Mas só as que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entretar a razão
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Esse poema do Fernando Pessoa fala sobre a proposta da criação artística. O autor, lindamente, trabalha o poeta e a poesia do homem, mostrando a noção de eu-lírico quando fala da dor sentida pelo poeta e da dor fingida pelo eu-lírico. Essas duas dores são diferentes porque o eu-lírico pode trasmitir algo que deixa a dúvida de ser o que o poeta sente ou não. Em outras palavras, temos o poeta que sente uma dor e o eu-lírico que finge a dor do poeta e a passa para a escrita. Além disso, tem também a visão do leitor que só terá acesso à dor do eu-lírico (que não é mais a do poeta) se ele ler. Então, temos três emoções diferentes: a dor que o poeta sente, a dor que o eu-lírico finge e a dor que o leitor conhece, lê, que é a comoção.
A comoção é o sentimento que qualquer obra de arte faz o leitor/espectador ter, visto que uma das principais intenção das artes é a de tocar quem assiste, lê ou ouve.
Voltando às dores do poema, os leitores não sentem nem a dor real do poeta, nem a imaginária do eu-lírico. A primeira dor ficou transformada com o eu-lírico e a imaginária com o leitor. O que, por fim, este último realmente sente é a comoção, essa terceira dor que surge pelas dores dos outros dois (do poeta e do eu-lírico).
Confuso? Nem tanto. Se for esquematizar fica assim:
Poeta --> dor
Dor do poeta --> eu-lírico que a transforma na dor escrita
Dor do poeta + dor do eu-lírico --> dor do leitor (comoção)
Sendo que cada dor é diferente uma da outra por que são sentidas por "pessoas" diferentes (o poeta e o eu-lírico são considerados dois seres distintos).
Segundo Clarice Zamonaro, minha querida professora de Literatura Portuguesa, "o poeta derrama sua alma do eu-lírico, através da escrita" e a emoção do poeta que é a dor real através do eu-lírico, passa a ser fingida para, no fim da história, ser lida pelo leitor que sente a comoção e cada um tem uma dor diferente.
Bonito ne? :D
Depois, ainda no poema, para finalizar, na terceira estrofe, o eu-lírico de Fernando Pessoa apresenta o contraste entre razão e coração que apesar de serem contrários, caminham juntos e não conseguem nunca se separar. O coração comanda a arte, sendo o estímulo que a alma sente, trazendo, pelos sentimentos, uma leitura superficial da paisagem. Depois, a razão vem ser a demonstração da alma e a poesia é racional porque, apesar de trazer emoções, há o trabalho e o uso da inteligência para organizar as palavras de tal maneira que consigam trazer a comoção ao leitor.
Então, para escrever, temos o poeta, o eu-lírico e o leitor. No poeta, tem o sentimento que vê a paisagem e a trabalha na inconsciencia. O poeta recebe um estímulo e então a filtra racionalmente para ser escrita. Há, assim, os dois lados que conduzem o ser humano: o consciente com a razão e o inconsciente com a emoção.
Quanto às conversas de msn e o prazer de escrever, um querido meu, comentou há alguns dias que a graça de escrever está no fato de que o escritor pode, ou não, estar falando de si mesmo e fica aberto ao leitor imaginar o que realmente acontece, ou não.
A graça de escrever é essa: poder colocar no papel racionalmente o que a gente sente com o coração e o melhor de tudo é que ninguem precisa ficar sabendo se a gente sentiu realmente ou se foi só imaginação ou comoção pelos sentimentos de algum outro vivente.

e eu adoro gente que escreve ;)

Um comentário:

Anônimo disse...

Este post fez-me lembrar uma reflexão que me pediram uma vez "o poeta é real ou ficticio? Sente ou só faz sentir? É mesmo um fingidor? Ou um ser honesto e sincero?"
E lembro que nessa altura adorei fazer esse trabalho! Estavamos precisamente a dar Fernando Pessoa :)